FUTURO INCERTO

A gravidade de uma crise econômica alemã para a Europa

Pacelli Luckwü · 14 de Fevereiro de 2023 às 17:06 ·

A Alemanha passa por uma crise econômica sem precedentes desde a Segunda Guerra. E isso é má notícia para todo o Velho Continente

 


Logo após a Primeira Guerra Mundial, quando os representantes dos países envolvidos se reuniam em Versalhes para depenar a águia do defunto império alemão, o famoso economista John Maynard Keynes alertou que condenar a Alemanha economicamente era condenar todo o continente europeu.

O economista participou das reuniões que culminariam no Tratado de Versalhes como oficial do Tesouro Britânico e antecipou que as duríssimas penas impostas aos alemães acabariam com o equilíbrio da Europa civilizada e levariam ao caos social e ao fanatismo. Keynes ficou tão negativamente impressionado com o desenvolvimento das negociações na França que escreveu um livro digno de ser chamado de premonitório: As Consequências Econômicas da Paz.

No prefácio da edição francesa ele faz a seguinte pergunta retórica:

“A França estará segura porque suas sentinelas estarão à margem do Reno mesmo com derramamento de sangue, miséria e fanatismo prevalecendo a leste do Reno e se estendendo por dois continentes?”

Na Europa de 1918, do imediato pós-guerra, os valores base da civilização ocidental ainda estavam presentes — mesmo que a corrosão tivesse começado com maior velocidade exatamente durante o conflito. Ainda assim, é nesse período que as ideias mais extravagantes, muitas delas que causariam a maiores dores do século XX, tornam-se, como dizem os alemães, salonfähig, ou seja, circuláveis nos salões da sociedade sem causar um repúdio imediato.

Foi nessa Europa, ainda baseada nos valores que a fundaram, que as crises econômicas alemãs contribuíram para a geração do caos conhecido do nazismo, dos campos de concentração, da Segunda Guerra, da expansão do comunismo e do surgimento da Guerra Fria.

Acha exagero? Pois vou soltar alguns números. Nas eleições federais alemãs de 1928, o partido nazista obteve cerca de 2% dos votos. Quatro anos depois, nas eleições de 1932, o mesmo partido atingia mais de 33%, tornando-se a maior fração do parlamento. O que há entre um evento e outro? A crise de 1929. Ela atingiu a economia alemã com mais força do que outras economias. Nós, então, devemos nos perguntar qual o nível de caos que surgiria a partir de uma grande crise econômica alemã na Europa atual, na qual as ideias destrutivas que eram apenas salonfähig há 100 anos se tornaram o mainstream.


A crise alemã

A Alemanha passa por uma crise econômica sem precedentes desde a Segunda Guerra. É o que mostram os indicadores macroeconômicos do país.

O salário real do trabalhador alemão caiu 4,1% em 2022. É a maior perda de poder de compra desde a fundação da República Federativa da Alemanha, em 1949. Outras estimativas calculam uma queda do salário ainda maior, de 4,7%.

E esse número ficou negativo não apenas em 2022. Nos últimos três anos, a perda salarial real dos alemães fez com que todos os ganhos, desde 2014, fossem anulados. São oito anos, quase uma década perdida.

Diante dessa situação, os sindicatos pressionam as empresas por um aumento considerável dos salários. Os empresários respondem que um aumento na porcentagem requerida dificultaria ainda mais a situação, já delicada, das firmas alemãs.

As empresas alemãs de fato passam por uma grande dificuldade. O forte e rápido aumento de custos ameaça fechar as portas de muitas delas.

Uma pesquisa divulgada pelo Institut der Deutschen Wirtschaft (Instituto de Economia Alemã) revelou que, de longe, os dois maiores problemas das empresas do país são a falta de mão de obra e a escassez de energia.

O governo alemão tenta retirar sua responsabilidade afirmando que esses problemas são de ordem externa. Mas a causa é, em grande parte, doméstica.

A pirâmide demográfica não deixa dúvidas: a Alemanha envelheceu ao ponto de não conseguir substituir sua mão de obra. Apesar dos incentivos governamentais para que as pessoas tenham mais filhos, os valores e o modelo de sociedade desencorajam os casais.

Outro fator é que o sistema educacional alemão não tem preparado os jovens para ocupar as vagas já há muito abertas. Some-se a isso o fenômeno relativamente recente no país: as novas gerações não procuram mais a formação técnica tão demandada no mercado de trabalho. Todos querem diploma de cursos superiores cujos mercados já estão saturados.

Além disso, a Alemanha tem dificuldades em reter sua mão de obra qualificada. Na área de TI, por exemplo, não é incomum os alemães trabalharem de forma flexível para empresas de outras partes do mundo. Em várias outras áreas, muitos alemães cruzam a fronteira com a Áustria ou com a Suíça para trabalhar sob melhores condições.

O imposto de renda na Alemanha é um dos mais altos do continente, ficando atrás apenas da Bélgica.

Depois da questão da mão de obra, o maior problema enfrentado pelos empresários é a energia. Com a invasão russa da Ucrânia, os custos explodiram e o problema foi tratado como exclusivamente externo.

Mas não é o caso. Por mais de uma década, os alemães, mesmo avisados, fizeram-se dependentes do gás russo. Para agravar a situação, as pautas ambientais assumiram um quê de sagradas.

O país decidiu desligar usinas nucleares e banir a energia a carvão. Investimento energético só em fontes como eólica e solar, completamente insuficientes para garantir a segurança energética de um dos países mais industrializados do mundo.

Ficaram vulneráveis e qualquer mudança de conjuntura e estão pagando por isso.

As medidas exageradas, e hoje já reconhecidamente desnecessárias de combate à pandemia, também agravaram o quadro. De 2019 até 2022 o número de empresas alemães incapazes de sequer sustentar suas dívidas aumentou em 89%.

Um número parece sugerir que o país não está tão mal assim. A balança comercial alemã no ano passado, é verdade, teve um superavit de 79,7 bilhões de euros. Uma análise mais detalhada, entretanto, mostra que esse é o pior resultado desde o ano 2000.

Além de ganharem menos em termos reais, os alemães ficaram também consideravelmente mais pobres em termos de patrimônio.

Os investidores privados lucraram com juros e dividendos 84 bilhões de euros em 2022. Mas a perda de valor desses ativos foi de 421 bilhões. Com a queda dos ativos, todo o ganho dos últimos sete anos foi anulado.

Somando a perda de valor desses ativos com a inflação, temos um rendimento real negativo de 12,3% para 2022. É o pior resultado da série histórica. Para termos uma ideia, na crise de 2008, o rendimento desse tipo de ativo foi de -5,2%.

Contrariamente ao que dizem os líderes populistas, esses números não são somente abstrações que só dizem respeito ao “mercado”.

Um dado deixa muito claro estarmos falando da vida de pessoas reais, de carne e osso: do início de 2022 até meados de julho, a quantidade de pessoas na Alemanha frequentando o Tafel dobrou. O Tafel é uma organização que coleta alimentos bons que sobraram, e distribui para pessoas em necessidade.



As consequências econômicas para a Europa

A economia alemã não é só a maior da Europa, mas é também profundamente integrada na economia de seus vizinhos.

Um estudo realizado pela Associação Bávara de Economia (VBW) mostrou: somente as importações alemãs são responsáveis por quase 5 milhões de empregos na Europa.

Países mais próximos da Alemanha como República Tcheca, Eslováquia, Áustria e Países Baixos possuem de 7 a 9% do PIB dependente das importações alemães.

Uma crise na Alemanha, como corretamente previra Keynes há mais de 100 anos, tem o potencial de causar danos econômicos no continente ao ponto de abalar as estruturas civilizacionais europeias.

Em seu livro, Keynes alerta:

“Os homens nem sempre morrerão em silêncio, e, em sua angústia, podem derrubar os restos da organização e afundar a própria civilização”.

— Pacelli Luckwü é colaborador do BSM e editor da Agenda Berlim.

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