AINDA SOMOS OS MESMOS

Dirceu diz que governo Lula “é de centro-direita”; Frei Betto vê esquerda envelhecida

Paulo Briguet · 23 de Abril de 2024 às 17:08 ·

Petistas históricos resolvem deitar no divã e lamentar o atual momento político da esquerda brasileira
 

Duas vacas sagradas da esquerda brasileira manifestaram simultaneamente seu desapontamento com o momento político brasileiro e com o governo Lula III. Na segunda-feira (22), o ex-ministro José Dirceu disse, com todas as letras, que o governo do atual ocupante da Presidência “é de centro-direita, não de esquerda”. “Essa é a exigência do momento histórico e político que nós vivemos”, afirmou o ex-ministro de Lula. Por sua vez, Frei Betto, conselheiro e amigo pessoal de Lula, publicou um artigo em que diz: “É muito preocupante constatar que as forças progressistas não logram renovar seus quadros. (...) Tenho proferido conferências pelo Brasil afora e assessorado movimentos populares. Os cabelos brancos predominam na plateia. As poucas manifestações públicas convocadas pela esquerda reúnem número inexpressivo de pessoas e, em geral, a turma dos cabelos brancos”. O que está acontecendo com a esquerda brasileira? É o que vamos discutir hoje, no Conexão KGB, a partir das 20h.

 

O que disse Dirceu

O ex-ministro da Casa Civil José Dirceu disse, nesta segunda-feira (22), que o atual governo de Luiz da Silva (PT) é de centro-direita, e não de esquerda. A afirmação do ministro ocorreu no “Seminário Brasil Hoje – Diálogos para pensar o país de agora”, realizado pela Esfera Brasil em São Paulo.

“Eu queria dizer que o presidente Lula, não só foi eleito nessas condições, mas montou um governo que não é um governo de centro-esquerda, é um governo de centro-direita. Eu falo isso e todo mundo fica indignado, às vezes, dentro do PT [Partido dos Trabalhadores], porque realmente parte do PP [Partido Progressista] e do PL [Partido Liberal] estão, de certa forma, na base do governo. Essa é a exigência do momento histórico e político que nós vivemos.”

Depois do evento, Dirceu tentou reformular sua fala. Por meio de sua assessoria de imprensa que avalia o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um “governo de centro-esquerda, apoiado por partidos de direita” e não como um governo de centro-direita, como havia dito antes.

Ah, bom.

 

O que escreveu Frei Betto

Segue a íntegra do artigo publicado por Frei Betto no site da Unisinos, também na segunda-feira:


CABELOS BRANCOS

Participei em Belo Horizonte, no início de abril, do 12º encontro nacional do Movimento Fé e Política. Quase duas mil pessoas. Ao contrário dos encontros anteriores à pandemia, poucos jovens. A maioria de cabelos brancos ou tingidos.

Minha geração envelhece. Chego este ano aos 80. Nossas ideias, propostas e utopias, também envelhecem?

É muito preocupante constatar que as forças progressistas não logram renovar seus quadros. Para vice de Boulos, na disputa pela prefeitura de São Paulo, em outubro próximo, o PT precisou importar uma mulher filiada a outro partido: Marta Suplicy, que fará 80 anos em março de 2025. No Rio, o PT parece não ter quem indicar para possível vice na chapa do prefeito Eduardo Paes, candidato à reeleição. Tende a importar Anielle Franco, do PSOL.

Tenho proferido conferências pelo Brasil afora e assessorado movimentos populares. Os cabelos brancos predominam na plateia. As poucas manifestações públicas convocadas pela esquerda reúnem número inexpressivo de pessoas e, em geral, a turma dos cabelos

Nós, da esquerda, estamos acuados. Como diz a canção de Belchior, “minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo, tudo, tudo, tudo que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos (...) como os nossos pais”. “Nossos ídolos ainda são os mesmos”. E não vemos que “o novo sempre vem”.

A queda do Muro de Berlim abalou as nossas esperanças em um mundo onde todos teriam a sua existência dignamente assegurada. E o capitalismo, gato de sete fôlegos, inovou-se pelos avanços da ciência e da tecnologia e, sobretudo, do neoliberalismo.

Primeiro, a privatização do patrimônio público; em seguida, das instituições sociais, reduzidas a duas por Margaret Thatcher: o Estado e a família. E, por fim, o cidadão foi despido de seu manto aristotélico e condenado a ser mero consumista, inclusive de si mesmo ao passar horas a se mirar no espelho narcísico das redes digitais.

Há uma progressiva despolitização da sociedade. A direita é como uma maré que sobe e ameaça afogar o que nos resta de democracia liberal. Basta dizer que um dos três programas de maior audiência da TV Globo e, portanto, de faturamento, é o BBB, que bem espelha os tempos em que vivemos: ali são explícitas as regras do sistema capitalista. O único objetivo é competir. Todos sabem que, ao final, apenas uma pessoa haverá de amealhar o pote de ouro. E a missão dos concorrentes é cada um fazer tudo para que seus pares sejam eliminados. É o que milhões de adolescentes aprendem ao perder horas assistindo àquele simulacro de “O anjo exterminador”, de Buñuel.

Na esquerda “ainda somos os mesmos”. Não semeamos a safra de novos militantes com medo de que eles se destacassem e ocupassem as nossas instâncias de poder. Abandonamos as favelas, as zonas rurais de pobreza, os movimentos de bairros. E não aprendemos a atuar nas trincheiras digitais, monopolizadas pela direita como armas virtuais da ascensão neofascista.

Não sabemos como reagir diante do fundamentalismo religioso que mobiliza multidões, abastece urnas, elege inclusive bandidos notórios. Fundamentalismo que apaga as desigualdades sociais e as contradições de classe e ressalta que tudo se reduz à disputa entre Deus e o diabo. Todo sofrimento decorre do pecado. Eliminado o pecado, irrompe a prosperidade, que empodera e favorece o domínio: a confessionalização das instituições públicas; a deslaicização do Estado; a neocristandade que condena à fogueira da difamação e do cancelamento todos que não abraçam “a moral e os bons costumes” dos que clamam contra o aborto e homenageiam torturadores e milicianos assassinos.

Precisamos fazer autocrítica, rever nossas ideias, ter a coragem de abrir espaços às novas gerações e reinventar o futuro. Nossos cabelos brancos denunciam o inverno que nos acomete. É hora de uma nova e florida primavera!

 


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