DIÁRIO DE UM CRONISTA

O colecionador de conversões

Paulo Briguet · 4 de Maio de 2024 às 08:57 ·

Há muitos anos venho estudando um fenômeno que ocorre todos os dias: a conversão dos ateus
 

“Agora vemos por um espelho, e de maneira obscura, mas depois veremos face a face.”
(Cor 13, 12)

Releio a passagem do livro de São Marcos em que Jesus encontra o cego em Betsaida. Tomando o pobre homem pela mão, leva-o até um lugar afastado, cospe em seus olhos e impõe-lhe as mãos. Indagado por Jesus sobre o que via, o homem responde, confuso: “Vejo as pessoas como se fossem árvores andando”. Por uma segunda vez, Jesus coloca as mãos sobre os olhos do cego, que então vê tudo “nitidamente e de longe”. (Mc 8, 22-25)

Esse pequeno trecho contém lições grandiosas. Primeira, Deus geralmente realiza prodígios quando o homem tem por testemunha apenas a própria consciência. Segunda, as maiores graças inicialmente podem não ser nítidas para quem está acostumado com a escuridão. Terceira (e mais importante), para ver “nitidamente e de longe” é preciso olhar antes para Deus.

Creio que a cura do cego em Betsaida serve para descrever um fenômeno que venho estudando há muito tempo: a conversão dos ateus. Aconteceu comigo há mais ou menos 25 anos, e deve acontecer em algum lugar do mundo todos os dias. De repente, um homem que nada vê além do mundo material passa a enxergar a Presença.

Sou um colecionador de conversões; posso listar várias. A do filósofo e matemático Blaise Pascal, em 23 de novembro de 1654, uma segunda-feira à noite, e registrada em um pergaminho que ele guardou costurado no forro de seu casaco até morrer, nove anos depois. A da filósofa Edith Stein, uma judia de nascimento que acabou assassinada pelos nazistas e se tornou Santa Teresa Benedita da Cruz. A de T. S. Eliot, o maior poeta do século XX, que em 1926 caiu de joelhos diante da Pietà. A de André Frossard, filho do secretário-geral do Partido Comunista Francês, que entrou por engano numa capela em Paris e 15 minutos saiu de lá “na companhia de uma amizade que não era deste mundo”.

Mas uma das conversões “preferidas” em minha coleção não foi solitária. Ou melhor, também foi, mas acabou sendo presenciada externamente por outras pessoas, no velório do pintor Ismael Nery, em 6 de abril de 1934. Ismael, vitimado aos 33 anos pela tuberculose, era muito amigo do poeta Murilo Mendes, até então um cético materialista. A conversão de Murilo Mendes foi narrada por outro grande escritor, o memorialista Pedro Nava, no livro “O Círio Perfeito”:

“De repente uma fala começou a ser percebida. Parecia no princípio uma lamentação, depois um encadeado de frases tumultuando na excitação de uma palestra, que depois se elevou como numa discussão, subiu, cresceu, tomou conta do pátio feito um atroado de altercação e disputa, clamores como num discurso e gritos. Era o Murilo bradando no escuro.”

Nunca saberemos exatamente o que Murilo Mendes testemunhou naquela noite. Talvez encontremos alguma pista em seus poemas, em suas árvores andantes. Sabemos apenas que ele viu, assim como o cego de Betsaida, “nitidamente e de longe”.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de Nossa Senhora dos Ateus.

 


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