O hospício da democracia

Paulo Briguet · 26 de Março de 2024 às 14:42 ·

O Alienista, de Machado de Assis, conta a história de um doutor que se transforma em um ditador que prende qualquer pessoa, a qualquer momento, sob qualquer pretexto. Você já viu algo parecido?
 

Há 142 anos, o maior escritor brasileiro, Machado de Assis, publicou a novela O Alienista, considerada uma de suas obras-primas. A história se passa durante o Brasil colônia, na Vila de Itaguaí, onde um ilustre filho da terra, o Dr. Simão Bacamarte, decide fundar um sanatório para doentes mentais, a Casa Verde. Gradativamente, o médico psiquiatra se torna o ditador e o juiz do lugar, com poder absoluto para prender e soltar qualquer pessoa, a qualquer momento, sob qualquer pretexto.

Um grande escritor já disse que nada existe na realidade sem estar primeiro na literatura. O Brasil de hoje é a Itaguaí descrita por Machado de Assis em O Alienista. Somos governados por um Dr. Bacamarte que pode investigar, acusar, prender e condenar qualquer um que não cumpra os requisitos de sanidade e legalidade que não estão escritos em lugar algum, somente na cabeça dele.

Durante a pandemia, surgiram vários Drs. Bacamartes que condenaram milhões a prisão domiciliar em nome da ciência, da mesma forma que o personagem da narrativa machadiana. Esgotado o pretexto do vírus, agora se persegue, se censura e se prende em nome da democracia. Ciência e democracia: duas palavras cujo sentido foi esvaziado e agora são usadas pelos seus próprios assassinos. Não há nada menos científico do que perseguir ideias divergentes. Não há nada menos democrático do que proibir opiniões divergentes.

Como mostra Bertrand de Jouvenel no clássico O Poder – História Natural do Seu Crescimento, o Direito em nosso tempo se bestializou como instrumento do poder:

“A partir do momento em que não há mais Direito intangível em suas partes essenciais, sustentado por crenças comuns em toda a Sociedade, a partir do momento em que o Direito, inclusive em seus aspectos morais mais fundamentais, é indefinidamente modificável conforme a vontade do legislador, não há outra escolha senão ou sua proliferação monstruosa e incoerente ao sabor dos interesses que se agitam e das opiniões que se insurgem, ou sua construção sistemática por um mestre que sabe o que quer e que submeterá duramente a sociedade às condutas que ele julga dever prescrever”.

A partir da Revolução Francesa, o “mestre que sabe o que quer” e o “legislador” passaram a ser a mesma pessoa: o ditador que acusa, investiga, julga, pune e governa. Não é por acaso que o gênio de Machado de Assis situa a narrativa de O Alienista no final do século XVIII, pontuando a história com várias referências ao processo revolucionário, como a Queda da Bastilha e o Terror jacobino. Como grande escritor que era, Machado conseguiu captar o espírito dos processos políticos que maculariam a história do Brasil ao longo dos séculos vindouros. Ouso dizer que O Alienista é uma fábula distópica avant la lettre.

Em O Alienista, temos um indivíduo que se arvora em decidir quem é louco e quem não é. Atualmente, temos uma autoridade que se crê igualmente detentora dos critérios de normalidade. Para quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir, para quem ainda não perdeu o senso de realidade em meio à esquizofrenia midiática do nosso tempo, está claríssimo que o Brasil não é um regime de normalidade. Nosso país se tornou o hospício da democracia, onde uma professora aposentada de 71 anos é condenada a passar a velhice na cadeia como criminosa de alta periculosidade, onde um jovem intelectual é colocado numa prisão infecta acusado de fazer uma viagem que nunca fez e onde uma juíza e um jornalista estão no exílio por dizer a verdade sobre os donos do poder.

Realmente, dormir dois dias numa embaixada estrangeira não é algo normal. Mas quem ainda pode dizer que o Brasil vive um estado de normalidade? Só o Dr. Simão Bacamarte. E mesmo ele é bom lembrar termina por lembrar que o verdadeiro louco é o doutor.

Paulo Briguet é escritor e editor-chefe do BSM. Autor de O Mínimo sobre Distopias.

 


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