NA DELEGACIA
Você sabe com quem está falando?
Hoje em dia, denunciar um crime pode se tornar um ato antidemocrático. Leia a crônica de Silvio Grimaldo, diretor do BSM
A mulher chega na delegacia:
— Quero relatar um estupro!
— Quem é a vítima? — pergunta o delegado.
— Eu!
— E o estuprador?
— Não sei bem, era careca, alto, vestia Prada.
— Humm. Você tem provas?
— Sim. Tem as marcas no meu corpo. Tem o vídeo da câmera de segurança do... estacionamento, que mostra o momento em que ele me agarrou. Eu o arranhei, deve dar para fazer exame de DNA com a pele dele nas minhas unhas.
— Isso é ridículo, não prova nada.
— Mas tem o vídeo dele me atacando, olha aí!
— Humm... A senhora chama isso de ataque? No máximo um esbarrão.
— Ele me jogou no banco do carro e rasgou minha roupa.
— É muito vago, isso não é documentação crível. São dados genéricos. Mas falando em roupa, a senhora estava vestida assim?
— Assim como?
— Assim, com essa saia e esse decote?
— Sim. Mas o que iss...
— Humm...
— Humm o quê?
— Mas também, né?
— Oi?
— Sai assim e não quer ser estuprada?
— Agora então é minha culpa?
— De quem mais seria? A senhora saiu com clara finalidade de tumultuar a paz do sujeito. Aliás, vou investigar isso aí, a senhora não pode provocar as pessoas desse jeito.
— Mas ele que me atacou, eu não fiz nada...
— É o que a senhora diz, mas a lei diz outra coisa, a lei diz que a senhora quer confundir a cabeça das pessoas e criar pânico com essa teoria da conspiração de que há um estuprador por aí!
- Mas é você que está dizendo isso!
— Exatamente.
— Absurdo! Você não é a lei, é só um delegado.
— Pelo jeito, além de tumultuar o sossego das pessoas, espalha fakenews. Vou ter que colocá-la no inquérito da...
— Você tá louco! Tá achando que é rei?
— Imperador...
— Como?
— Pelo jeito a senhora não assiste a CNN, né?
— Não, claro que não, trabalho o dia todo.
— Ah, logo vi que era bolsonarista...
— ???
— Me diga, se a senhora foi supostamente estuprada, violentada, como chegou aqui?
— Uma colega da firma me encontrou no estacionamento e me trouxe até a delegacia.
— No carro dela?
— Que isso tem a ver?
— A lei é clara, senhora. No carro dela?
— Não sei, acho que no carro da firma.
— Agora, no meio da tarde, durante o expediente?
— Sim, logo depois dele me...
— Humm.
— ???
— É claro desvio de finalidade, tanto do carro da firma quanto da colega de trabalho. Abusar da função e do cargo para resolver problemas pessoais... Vamos investigar.
— Mas isso é uma loucura.
— A senhora vai continuar com esses ataques?
— Ataques? Eu que fui atacada e vocês não vão fazer nada!
— Isso não é nossa responsabilidade. A senhora que deveria tomar cuidado para não ser estuprada.
— E ainda me acusa! Você é um incompetente.
— É inegável que a senhora põe em dúvida a lisura do nosso trabalho, num ataque ao estado democrático de direito. Será investigada por ataques antidemocráticos.
— Absurdo... Loucura... Quero falar com seu chefe.
— Não tenho chefe. Eu sou o chefe. Eu que mando aqui. Você sabe com quem está falando?
— Deve haver alguma instância superior onde eu possa reclamar, buscar meu direito, buscar justiça!
— (risos contidos) De fato, há.
— Então vou até às últimas consequências.
— A senhora pode tentar, mas eu que mando lá também.
— Então não há o que fazer?
— Posso dar um conselho de amigo?
— (chorando) Sim...
— É possível reclamar por lá, mas provavelmente a senhora será estuprada novamente.
— Silvio Grimaldo é cientista político e diretor de conteúdo do BSM.
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