ANÁLISE JURÍDICA

Coerção vacinal, uma violação dos direitos humanos

Especial para o BSM · 28 de Fevereiro de 2024 às 15:27 ·

Em artigo especial para o BSM, o jurista e escritor Augusto Zimmermann interpreta a recente decisão da Suprema Corte de Queensland, que considerou ilegal a obrigatoriedade da vacina de Covid-19

Prof Dr Augusto Zimmermann PhD

A recente decisão da Suprema Corte de Queensland de declarar ilegal a coerção vacinal é indubitavelmente uma decisão na direção certa. O Tribunal proferiu nesta terça-feira seu julgamento há muito esperado em três ações movidas por 86 partes contra o Serviço de Polícia de Queensland e o Serviço de Ambulância de Queensland por suas instruções coercitivas aos trabalhadores emitidas em 2021 e 2022. Essas orientações exigiam que os trabalhadores dos serviços de emergência recebessem vacinas contra a Covid-19 e doses de reforço ou enfrentassem severas medidas disciplinares, incluindo a rescisão do contrato de trabalho.

O juiz Glenn Martin, da Suprema Corte de Queensland, considerou que tais orientações violaram um determinado artigo da Lei Estadual de Direitos Humanos. Como consequência, os mandatos de vacinas contra a Covid-19 para os trabalhadores da polícia e serviço de ambulância de Queensland foram considerados ilegais, porque tais instruções limitavam os direitos humanos destes mesmos trabalhadores, que eram obrigados a se submeter a um procedimento médico sem consentimento adequado. O juiz Martin afirmou que o descumprimento da determinação da lei teve "consequências que mudaram a vida" dos requerentes e ordenou que o comissário de polícia e o diretor-geral da Queensland Health fossem impedidos de tomar medidas para fazer cumprir as ordens arbitrárias ou continuar qualquer processo disciplinar contra eles.  

No entanto, o acórdão não tomou uma decisão mais direta sobre os notórios riscos à saúde ou a eficácia destas vacinas contra a Covid-19. Aparentemente, os trabalhadores só obtiveram vitória porque tanto o comissário quanto o diretor-geral da saúde não consideraram adequadamente os conselhos de direitos humanos que receberam. Além disso, o Tribunal de Justiça também considerou que:

  1. Embora cada uma das instruções limitasse os direitos previstos no artigo 17 da Lei de Direitos Humanos, porque cada uma tinha o efeito de exigir que um funcionário se submetesse a um tratamento médico (uma vacinação) sem o consentimento total do funcionário,
  2. O limite era razoável em todas as circunstâncias.[1]

Dessa forma, a ministra da Saúde de Queensland, Shannon Fentiman, diz que o governo estadual agora está considerando recorrer da decisão do tribunal. Ela argumenta que a decisão foi meramente técnica, pois não explicitamente mencionou que as vacinas contra a Covid-19 eram contrárias à Lei Estadual de Direitos Humanos, já que a decisão foi apenas em relação à forma como as diretrizes foram feitas, não as diretivas em si.[2] "O Excelentíssimo Juiz achou que o limite aos direitos humanos das pessoas de ter cuidados de saúde impostos a elas sem consentimento era justificado por causa da pandemia", disse Fentiman a repórteres.[3]

Um recurso dessa decisão poderá eventualmente levar a uma decisão final da Suprema Corte da Austrália, que, sob licença especial, teria então a capacidade de decidir sobre a constitucionalidade dos mandatos de vacina. Esse assunto foi cuidadosamente considerado em meu livro intitulado "Emergency Powers, Covid-19 Restrictions & Mandatory Vaccination: A Rule-of-Law Perspective" (Connor Court Publishing, 2022), que escrevi conjuntamente com o professor emérito Gabriel A. Moens AM, um dos nossos principais acadêmicos de Direito Constitucional na Austrália.

A Constituição Australiana foi emendada em um referendo em 1946 para incluir a seção 51(xxiiiA), que diz explicitamente que nenhuma lei com relação à prestação de tratamento farmacêutico ou médico pode ser imposta ao cidadão como uma forma de compulsoriedade. Esta disposição permite a concessão de vários serviços médicos e farmacêuticos, mas não ao ponto de autorizar qualquer forma de compulsoriedade.[4] Neste sentido, ninguém na Austrália poderia ser obrigado pelo governo a se sujeitar à obrigatoriedade de serviços médicos ou farmacêuticos, por exemplo, vacinas.

Como dito em nosso livro, a implementação da vacinação obrigatória contra a Covid-19 está em desconforto com a jurisprudência da Suprema Corte Australiana. Essa importante matéria foi considerado pela primeira vez pela Suprema Corte em 1949 no caso British Medical Association v Commonwealth.[5] A Corte naquela ocasião decidiu que a legislação que exigia que os médicos usassem um formulário específico de prescrição médica, como parte de um esquema para fornecer benefícios farmacêuticos, era inválida como forma de tratamento médico compulsório. Na opinião do juiz Williams, 

a expressão invalida toda legislação que obrigue médicos ou dentistas a prestar qualquer forma de serviço médico compulsório" (grifo nosso).[6]

Esse pronunciamento judicial confirma o postulado constitucional de que toda legislação que obriga o serviço médico compulsório é constitucionalmente inválida. Ela resulta na vedação constitucional de governos federais e estaduais australianos de imporem a vacinação obrigatória. Assim, se qualquer pessoa for orientada a ser obrigatoriamente vacinada, tal determinação configura uma conduta inconstitucional. Tal obrigatoriedade interferiria de maneira inconstitucional na relação entre o médico e o paciente – uma relação que se baseia no contrato e na confiança. É claro que os médicos que prestam livremente o seu serviço médico não criam tal tratamento médico compulsório. No entanto, como o juiz Webb mencionou explicitamente:

Quando o Parlamento se aproxima entre paciente e médico e faz depender a continuidade lícita de sua relação como tal de uma condição, exigível por multa, de que o médico preste ao paciente um serviço especial, a menos que esse serviço seja dispensado pelo paciente, cria-se uma situação que equivale a uma forma de alistamento civil. [7]

A declaração do juiz Webb também indica que, mesmo que o médico fosse compelido a prestar um serviço, o paciente teria o direito constitucional de renunciar a esse serviço. Ou seja, nenhum cidadão australiano deve ser de forma alguma coagido a qualquer tratamento médico, inclusive vacinação. Um tratamento médico que é imposto a uma pessoa sem o seu devido consentimento é uma ofensa à dignidade dessa pessoa. Em Bowater v Rowley Regis Corp, Lord Justice Scott explicou que o consentimento para o tratamento, incluindo a vacinação, é necessário para prosseguir com o tratamento:

Não se pode dizer que um homem está verdadeiramente "disposto" ao tratamento a menos que esteja em condições de escolher livremente, e a liberdade de escolha predica, não apenas o pleno conhecimento das circunstâncias em que o exercício da escolha está condicionado, para que ele possa escolher sabiamente, mas na ausência de sua mente de qualquer sentimento de coerção para que nada interfira na liberdade de sua vontade.[8]

 

Em 2009, em Wong v Commonwealth; Selim against Professional Services Review Committee,[9] o Chief Justice French e o juiz Gummow consideraram que qualquer tratamento médico compulsório é uma “compulsão ou coerção, no sentido legal e prático, para realizar trabalho ou prestar serviços [médicos]”.[10] Em síntese, o requisito constante na disposição constitucional equivale a uma limitação explícita à obrigatoriedade da prestação de serviços médicos, por exemplo a vacinação obrigatória, que continua a ser regulada pela relação contratual entre doentes e médicos.

Naturalmente, a ordem de saúde "no jab, no job" do governo de Queensland constituiu uma violação flagrante de um direito constitucional fundamental. Nesse contexto, é importante ressaltar que a jurisprudência da Suprema Corte indica muito claramente que a proibição do tratamento médico não desejado deve ser interpretada de forma bastante ampla à fim de invalidar qualquer lei que exija tal medida coercitiva, expressamente ou por implicação prática. Este ponto é particularmente abordado em um comentário do juiz Webb em British Medical Association v Commonwealth:

Se o Parlamento não pode fazê-lo legalmente diretamente por meios legais, não pode fazê-lo indiretamente, criando uma situação, distinta de meramente aproveitar-se de uma, na qual o indivíduo não tem escolha real a não ser o cumprimento" (grifo nosso).[11]

Em outras palavras, nenhuma lei na Austrália pode impor limitações aos direitos dos cidadãos que direta ou indiretamente equivalem a uma forma de tratamento médico coercitivo. Neste sentido, se os governos australianos não podem constitucionalmente obrigar todos a serem vacinados, certamente não podem criar indiretamente uma situação em que todos seriam forçados a tomar a vacina. Mais especificamente, do ponto de vista constitucional, a jurisprudência da Suprema Courte Australiana indica muito claramente que o que não pode ser feito diretamente, não pode ser alcançado indiretamente sem se violar o artigo 51 da Constituição.

Além disso, a vacinação compulsória prejudica o princípio democrático da igualdade perante a lei. Se os australianos não vacinados enfrentassem sérias restrições de direitos constitucionais essas restrições igualmente violariam o princípio democrático da igualdade perante a lei. A exclusão deliberada de australianos não vacinados da participação em certas atividades os discriminaria com base no status vacinal. Assim, no acórdão Leeth v Commonwealth,[12] o juiz Deane e o juiz Toohey recorreram ao preâmbulo da Constituição para sustentar a opinião de que o princípio da igualdade está implícito na Constituição Australiana. Eles argumentaram que "a igualdade teórica essencial ou subjacente de todas as pessoas sob a lei e perante os tribunais é e tem sido uma doutrina fundamental e geralmente benéfica da common law e um pressuposto básico da administração da justiça sob nosso sistema de governo".[13]

Também vale a pena abordar o assunto sob a perspectiva da autodeterminação dos indivíduos. Isso foi destacado em Airdale National Health Service Trust v Bland (1993), quando Lord Justice Mustill expôs esse perigo com a seguinte clareza:

 

Se o paciente é capaz de tomar uma decisão sobre permitir ou não o tratamento e decide não permiti-lo, sua escolha deve ser obedecida, mesmo que em qualquer ponto de vista objetivo seja contrário ao seu melhor interesse. Um médico não tem o direito de proceder diante de objeções, mesmo que seja claro para todos, incluindo o paciente, que consequências adversas e até mesmo a morte ocorrerão ou podem ocorrer.[14] 

 

Da mesma forma, nesse mesmo caso, o juiz Goff observou:

    

Está estabelecido que o princípio da autodeterminação exige que se respeite a vontade do indivíduo, de modo que, se uma pessoa adulta de mente sã se recusar, ainda que de forma irrazoável, a consentir com um tratamento ou cuidados através dos quais a sua vida se prolongaria ou poderia prolongar-se, os médicos responsáveis pelos seus cuidados devem dar cumprimento aos seus desejos,  embora não considerem ser do seu interesse fazê-lo.[15]

O direito de um indivíduo recusar a vacinação também é apoiado pelo Código de Nuremberg — um código de ética — invocado durante os julgamentos dos médicos nazistas em Nuremberg. Este Código tem como primeiro princípio a disposição e o consentimento informado do indivíduo para receber tratamento médico ou participar de um experimento. E é justamente o caráter experimental das vacinas contra a Covid-19 e a discordância generalizada sobre a capacidade das vacinas de fornecer proteção contra um vírus que é responsável pela falta de confiança em sua eficácia.

Os não vacinados, ao invocarem implicações sanitárias para recusar a vacina, podem, assim, ironicamente, invocar o mesmo argumento usado pelos defensores das vacinas, que também se baseiam em razões de saúde para promover a vacina. Com efeito, num clima de incerteza, caracterizado por uma demonstrada falta de confiança nestas vacinas, como é amplamente demonstrado pela hesitação de se vacinar na Austrália, um programa de vacinação obrigatória não pode ser considerado consensual. Assim, a recusa da pessoa em ser vacinada pode ser baseada no fato de que essas vacinas ainda são experimentais e seus efeitos a longo prazo e segurança em seus receptores são duvidosos.

Sem a proteção das liberdades civis, um governo não pode dizer-se verdadeiramente democrático e sob o Estado de Direito. Importante será aqui dizer que eu anseio pelo dia em que todas as pessoas envolvidas nestas graves violações dos direitos humanos sejam criminalizadas com êxito. Estou, portanto, inteiramente de acordo com a opinião de Campbell Newman, o ex-premiê de Queensland e que também serviu como Prefeito de Brisbane, que corajosamente afirmou: 

"Todos os agentes públicos envolvidos na vergonhosa política de coerção vacinal devem ser [criminalmente] responsabilizados por suas ações. Nenhum deles deveria escapar de "enfrentar a música" por suas decisões ilegais e pela miséria que infligiram a tantas pessoas inocentes".

Embora não seja viável prever o que a mais alta corte do país, a Suprema Corte da Austrália, poderia fazer se fosse chamada a considerar a constitucionalidade da vacinação coercitiva, é possível contudo determinar como a Constituição Australiana deveria ser interpretada. É claro que a Constituição deve ser interpretada de forma a promover seus propósitos, valores e princípios. Acima de tudo, a Suprema Corte Australiana, ao apreciar a constitucionalidade desses mandatos de vacina, deve considerar que o objetivo primordial de se ter uma Constituição baseada nos princípios da democracia liberal e do governo representativo, é o estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos capaz de limitar o poder arbitrário do Estado e assegurar a realização do princípio da legalidade conhecido como Estado de Direito.

Para concluir, o governo de Queensland poderá ainda recorrer da recente decisão de sua Suprema Corte estadual. Espero sinceramente que sim. Isso poderia, eventualmente, dar à Suprema Corte Australiana a oportunidade de tomar uma decisão final sobre essas importantes questões jurídicas. A vacinação obrigatória está em profunda dissonância com a jurisprudência da Suprema Corte e seria de se esperar que seus juízes reconheçam a própria jurisprudência deste Tribunal Maior, decidindo assim que a coerção vacinal, de fato, constitui não apenas uma violação de direitos humanos fundamentais, mas também uma violação grosseira à letra e ao espírito da Constituição Australiana.

Augusto Zimmermann é professor e chefe de Direito da Sheridan Institute of Higher Education e atuou como reitor associado de direito na Universidade Murdoch. Ex-comissário da Comissão de Reforma da Lei da Austrália Ocidental. Principal autor do livro “Emergency Powers, Covid-19 Restrictions & Mandatory Vaccination – A Rule of Law Perspective” (Connor Court Publishing, 2022), disponível neste link.

 

[1] Johnston v Carroll (Comissário do Serviço de Queensland) & Anor; Witthahn & Ors v Wakefield (Chefe Executivo dos Serviços Hospitalares e de Saúde e Diretor Geral da Queensland Health); Sutton & Ors v Carroll (Comissário do Serviço de Polícia de Queensland) [2024] QSC 2. Resumo aqui: https://www.sclqld.org.au/caselaw/14152

[2] Talissa Siganto, 'Mandating COVID-19 vaccines for some Queensland frontline workers found to be illegal, judge rules', ABC News, 27 de fevereiro de 2024, at

[3] 'Serviço policial, departamento de saúde burlou mandatos de vacina, juiz constata', Brisbane Times, 27 de fevereiro de 2024, em

[4] Ver: Alexandra Private Geriatric Hospital Pty Ltd v Commonwealth (1987) 162 CLR 271, em 279; 69 ALR 631; Halliday v Commonwealth (2000) 45 ATR 458; [2000] FCA 950 em [11].

[5] (1949) 79 CLR 201; [1949] ACS 44.

[6] (1949) 79 CLR 201, em 287 (Williams J).

[7] (1949) 79 CLR 201, em 295 (Webb J).

[8] Bowater v Rowley Regis Corp [1944] KB 476, em 479 (Scott LJ).

[9]  (2009) 236 CLR 573

[10] Ibidem em [62].

[11] (1949) 79 CLR 201, em 293 (Webb J).

[12] (1992) 174 CLR 455.

[13] Ibidem em [8].

[14] Airdale National Health Service Trust v Bland [1993] AC 789, em 889. (Mustill LJ).

[15] Ibidem em 866.

 


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